O interesse sobre as neurotecnologias tem crescido nas últimas décadas, especialmente pela sua integração com tecnologias digitais e sistemas de inteligência artificial.
O termo “neurotecnologias” se refere a uma gama de métodos e ferramentas que interagem com o sistema nervoso central humano, capazes de acessar, monitorar, investigar, avaliar, manipular e/ou emular a estrutura e função dos sistemas neurais. Elas têm capacidade de influenciar diretamente a atividade cerebral, estabelecendo uma conexão direta entre cérebro e dispositivos externos. O uso dessas tecnologias impõem a necessidade de cuidados específicos, exigindo atenção redobrada às repercussões ético-jurídicas.
A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) lançou o quarto volume da série Radar Tecnológico com foco nas neurotecnologias, cujo objetivo é aprofundar a compreensão do tema, especialmente os desafios éticos e jurídicos impostos por essas inovações. Apresentamos os principais pontos abordados no estudo da ANPD.
Aplicações e potenciais usos
As neurotecnologias têm diversas aplicações, que abrangem desde o uso para melhoria de capacidades em pacientes com distúrbios neurológicos até o aprimoramento do desempenho de indivíduos saudáveis. Elencamos alguns exemplos:
- estimulação cerebral direta para tratamento de doenças como epilepsia;
- neuropróteses, como implantes de retina, espinha dorsal e implantes cocleares;
- robótica para controle de equipamentos ou aplicações que não utilizem o controle das mãos;
- jogos e realidade virtual para o controle de videogames e software.
Neurotecnologias e a proteção de dados pessoais
Apesar de não haver previsão legal do conceito de “dado neural”, aplica-se a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ao seu tratamento. Os dados neurais são dados pessoais, pois podem singularizar um indivíduo, permitir sua identificação indireta e ainda oferecer insights sobre seus estados mentais, comportamentos e saúde.
Ademais, grande parte dos dados neurais podem ser classificados como dados pessoais sensíveis (art. 5º, II da LGPD), já que são capazes de revelar informações sobre a saúde física ou mental, convicções ou características biométricas. Diante disso, impõe-se a incidência dos princípios de proteção de dados à atividade de tratamento realizada por meio dessas tecnologias.
Princípios da LGPD e os desafios das neurotecnologias
Aplicar a LGPD às neurotecnologias emergentes é um grande desafio. Isso ocorre principalmente porque o tratamento de dados neurais são complexos e, em alguns casos, tratados de forma oculta.
(i) Finalidade, adequação e necessidade – O tratamento de dados deve ter propósitos legítimos, informados e compatíveis com a finalidade original. No entanto, a imprevisibilidade dos sinais cerebrais dificultam a definição prévia de finalidades e a avaliação de usos secundários;
(ii) Qualidade dos dados – Os dados devem ser exatos, atualizados e pertinentes. Ocorre que, a capacidade do cérebro de mudar ao longo do tempo compromete a atualidade e relevância dos dados neurais;
(iii) Transparência – As informações sobre o tratamento de dados devem ser claras e acessíveis. Contudo, a complexidade técnica das neurotecnologias impõem obstáculos à compreensão;
(iv) Não discriminação – Conforme o art. 6º, IX, da LGPD, o tratamento não pode ser realizado para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos. O uso de dados neurais pode gerar práticas discriminatórias, especialmente com a aplicação de modelos de IA;
(v) Segurança – O acesso não autorizado a dados neurais, podem ter sérias consequências, já que essas informações estão ligadas diretamente aos pensamentos e atividades cerebrais de uma pessoa. Portanto, devem ser implementadas medidas técnicas e administrativas robustas para proteger os dados neurais contra acessos não autorizados, perdas ou alterações.
Hipóteses legais para o tratamento de dados neurais
Para que o tratamento de dados neurais seja lícito, é necessário que se enquadre em uma das hipóteses legais da LGPD (arts. 7º e 11). Entre essas hipóteses legais destacamos: o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador, a tutela da saúde, a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiros, a realização de estudos por órgão de pesquisa e o consentimento do titular, entre outras.
O consentimento consiste na manifestação livre, informada e inequívoca do titular para tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade específica. No entanto, devido à complexidade das neurotecnologias, é questionável a possibilidade da sua aplicação em razão da falta de consciência do titular, dificultando a garantia da livre manifestação de vontade e a adequada compreensão da operação de tratamento. Embora o consentimento possa ser, em tese, uma base legal válida para o uso de neurotecnologias, sua aplicação demanda dos agentes de tratamento um compromisso rigoroso com a proteção de dados.
Além do consentimento, outras hipóteses legais autorizam o tratamento de dados neurais no Brasil, como a realização de pesquisas acadêmicas e a tutela da saúde em contexto clínico. Contudo, mesmo nessas hipóteses, é fundamental que o uso de neurotecnologias observe princípios éticos e jurídicos.
Diante das amplas aplicações e do crescimento das neurotecnologias, é fundamental monitorar continuamente seus avanços para entender o impacto nos direitos à privacidade e à proteção de dados pessoais.
Este artigo foi preparado com propósito meramente informativo; não pode ser tratado como aconselhamento legal e as informações nele contidas não devem ser seguidas sem orientação profissional.